Étienne
de La Boétie..., eu o teria seguido por
todos os caminhos depois de ouvi-lo pronunciar seu “Discurso da Servidão
Voluntária”. Vivido na conturbada França do século XVI, onde o povo gaulês
encontrou derrota face ao exército e à fiscalização real, que lhes impôs a vil
carga de impostos, Étienne foi uma voz, a ecoar até hoje e para sempre, nas
almas de cidadãos oprimidos, a revirarem-se em suas dúvidas, a amargarem suas
opressões e verterem suas lágrimas de covardia.
Sua mais famosa obra, o discurso,
encontraria o mesmo eco hoje, dentro dos muros de nosso território, e traz
questões sobre o domínio de todo um povo, por um grupo pequeno que o oprima,
sem obstáculos e sem qualquer dificuldade de exercer esse controle.
Conceber a ideia de “Servidão
Voluntária” é paradoxal, pois o termo implica em suprimir a própria liberdade,
voluntariamente. Se lhes veio à memória, algum país cujo tecido social está
sujeito à prática de corrupção e ao domínio de pequeno grupo, que apesar da
impopularidade, não renuncia aos privilégios, vantagens e benefícios do poder,
não é mera coincidência e compreenderão melhor a contemporaneidade do discurso
de La Boétie.
Não poderia aqui reproduzir na
íntegra o discurso, pois lhes pareceria
cansativo, um ler interminável. Então, uma vez separados parágrafos que julguei
relevantes desse discurso, poderão traçar uma linha comparativa às
circunstâncias de hoje. Assim, vamos aos trechos...
“Que
nome se deve dar a esta desgraça? Que vício, que triste vício é este: um número
infinito de pessoas não a obedecer, mas a servir, não governadas mas
tiranizadas, sem bens, sem pais, sem vida a que possam chamar sua? Suportar a
pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de
bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só? Não de um
Hércules ou de um Sansão, mas de um só indivíduo, que muitas vezes é o mais
covarde e mulherengo de toda a nação, acostumado não tanto à poeira das
batalhas como à areia dos torneios, menos dotado para comandar homens do que
para ser escravo de mulheres? ”
Aqui,
La Boétie manifesta seu primeiro arroubo de indignação, onde há uma clara
repulsa pela servidão, porém ainda sem prejuízo da obediência. Sua revolta é
legítima, pois argumenta com a lógica de um ser humano cuja visão é ampla,
centrada e livre de conceitos partidários. Esse “um só indivíduo” pode ser
claramente interpretado como “uma fonte centralizadora de poder” que na época
era representada pelo rei de França e hoje tão bem representada por governos
tiranos totalitários e desumanos já bem conhecidos de nosso povo.
“...Dois
podem ter medo de um, ou até mesmo dez; mas se mil homens, se um milhão deles,
se mil cidades não se defendem de um só, não pode ser por covardia... ”
“Quantos
prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração
dos que a defendem! ”
Expõe
aqui as fraquezas humanas sem nomeá-los covardes e concebe com a luz da razão,
o amor à liberdade, como o elemento de ânimo que permite ao homem oprimido
lutar gloriosamente. De fato, o amor à liberdade é capaz de tornar invencível,
o mais fraco dos escravos, é capaz de surpreender e transpor o mais difícil dos
obstáculos. Mas La Boétie dispõe também, que esse amor à liberdade, representa
impulso que deve ser manifestado e materializado pela atitude propriamente.
Todavia,
La Boétie também desdenha o mesmo povo que não classifica de covarde. As
provocações talvez antecedam à gloriosa noção de solução, ...mas o fato é que
provoca! Como se desejasse aí disparar o dínamo, a mola motriz, a centelha de
reação desses povos.
“São,
pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois
deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. ” e mais adiante ... “Se
basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim
tão difícil? ”
São
pois, declarações de lucidez que em seu manifesto, descrevem a displicência dos
oprimidos, a negligência com que legitimam sua própria casta.
“Antes
demais, eu creio firmemente que, se nós vivêssemos de acordo com a natureza e
com os seus ensinamentos, seríamos
naturalmente obedientes ao país, submissos à razão e de ninguém
escravos”
Em
contrário ao que fazem crer alguns pensadores da história, não aquiesço que
Étienne La Boétie, seja precursor direto do anarquismo, pelo menos não como
responsável direto, não atribuo às suas reflexões, nenhum laço com o pensamento
anárquico que oblitera toda noção de ordem. De outra forma, compreendo a sua
noção de liberdade baseada na observação da natureza, como uma apologia à mais
perfeita ordem, pois não lhe faltam exemplos regrados pela comunhão com Deus e
pela observância da criação divina em seu estado mais puro cujo reino é
composto de harmonia, ainda que hierarquicamente. Não há escravos no reino
animal, mas há diferenças que muito se distinguem, se complementam e que se
socorrem.
“Há
três espécies de tiranos. Refiro-me aos maus príncipes. Chegam uns ao poder por
eleição do povo, outros por força das armas, outros sucedendo aos da sua raça”.
“Sendo
diversos os modos de alcançar o poder, a forma de reinar é sempre idêntica”.
“Os
eleitos procedem como quem doma touros; os conquistadores como quem se
assenhoreia de uma presa a que têm direito; os sucessores como quem lida com
escravos naturais.”
Assim
tem sido em diferentes tempos. Assim temos visto hoje se passar como filme,
cujo roteiro fora tão bem escrito por esse destacado observador do
comportamento dos povos. Quem não traz imediatamente à memória a situação dos
povos da América Latina, oprimidos pela tirania de seus governos castradores,
corruptores de caráteres, usurpadores de bens, manipuladores de opiniões,
abutres.. de olhares oblíquos, a cercear a liberdade de seus povos?
“O
tirano submete a uns por intermédio dos outros.”
“É
assim protegido por aqueles que, se algo valessem, antes devia recear, e dá
razão ao adágio que diz ser a lenha rachada com cunhas feitas da mesma lenha.”
Como
não trazer à lembrança imediata, todos os escândalos, todos os vexames, todos
os desfechos sujos enlaçados em traições, cujos protagonistas são todos da
mesma têmpera?
“Incrível
coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo esquecimento da
liberdade que não desperta nem a recupera;”
“É
verdade que, a princípio, serve com constrangimento e pela força; mas os que
vêm depois, como não conheceram a liberdade nem sabem o que ela seja, servem
sem esforço e fazem de boa mente o
que
seus antepassados tinham feito por obrigação”.
“Mas
o costume, que sobre nós exerce um poder considerável, tem uma grande orça de
nos ensinar a servir e (tal como de Mitrídates se diz que aos poucos foi se
habituando a beber veneno) a engolir tudo até que deixamos de sentir o amargor
do veneno da servidão.”
Étienne
lembra ainda, que aqueles que nasceram subjugados, desconhecem o prazer da
liberdade de escolha. Assim, mais que imprescindível é, que um povo não deixe
passar à geração seguinte, a sua própria submissão. E que observe quão sutil é
o veneno que o consome, pois dele se alimenta sem que mais o perceba. Destilado hoje, nas doses da propaganda vil
imposta, nas pequenas benesses que os compram, nas contendas que promovem entre
os subjugados, que adoçados pelos programas sociais que mal os arremediam,
deixam-se descansar na zona de conforto.
“As
sementes do bem que a natureza em nós coloca são tão pequenas e inseguras que
não aguentam o embate do alimento contrário”.
“Diga-se,
pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo
costume; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito”.
O
inimigo é preparado, astuto e conhecedor profundo da resistência fraca ou falta
dela. Implacável “alimento contrário” a que não se opõe um povo, cuja doutrina
da submissão foi bem ministrada. A isso se refere La Boétie com a expressão “obtém
pela educação e pelo costume”.
“O
Grão-Turco teve perfeita consciência de que os livros e a doutrina, mais do que
qualquer outra coisa, dão aos homens a capacidade de se conhecerem e de odiarem
a tirania. Sabe-se que nas suas terras não há mais sábios do que os que lhe
convém a ele”.
A
educação, é enfim, a luz de todas as coisas. O Princípio de todo construir, o
elemento principal da escolha e o caminho mais curto para a liberdade. Eis a
matéria-prima da ética e da sabedoria que une os povos num bem maior. Eis a
solução implícita no contexto do discurso, cuja referência à natureza, oferece
as ferramentas pacíficas do comportamento natural de cada indivíduo. Que assim
obedeça à sua lei natural de liberdade, que repudie a servidão, não servindo
pois à tirania a que foram forçados ou por engano, porém, sem jamais prescindir
da ordem.
“O
povo sempre foi assim. É perante o prazer que honestamente não pode atingir,
aberto e dissoluto e, face ao agravo e à dor que honestamente não deveria
sofrer, insensível”.
Não há hoje dissonância entre o discurso de
Étienne de La Boétie do século XVI e o roteiro de nosso viver atual. Não há
discordância entre nossos sentimentos, não há diferenças entre os tiranos, nem
sequer pela monta vergonhosa que somaram, a não ser pelos títulos de reis, que
aqui não se tem.
Mônica
Torres.
Nota: O Discurso da Servidão Voluntária pode ser
encontrado na íntegra e em português no link http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/boetie.pdf (arquivo
pdf).
Por: Mônica Torres
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Publicado originalmente em: Grupomoneybr